Ortopedia oncológica é o ramo que trata dos diferentes tipos de câncer em ossos e partes moles — não ósseas — da estrutura do corpo humano. Para falar desse importante tema, Dr. Rodrigo Salim convidou seu amigo e recém-eleito presidente da Associação Brasileira de Oncologia Ortopédica, Dr. Edgard E. Engel. Nessa conversa, entre outras informações, Dr. Engel revela que o joelho é a articulação com maior incidência de câncer.
A ortopedia tem diversos ramos que, em vários momentos, entrelaçam-se. Dr. Rodrigo Salim, responsável por este espaço, é um ortopedista cirurgião de joelho, mas há ortopedistas especializados em tornozelo, mãos e assim por diante. Uma especialidade que dialoga com todas as áreas ortopédicas, sobretudo a cirurgia de joelho, e da qual trataremos neste conteúdo é a ortopedia oncológica. O estreito laço com a cirurgia de joelho se deve ao fato de a articulação ser a com maior incidência de câncer.
Para falar com propriedade sobre a especialidade, que trata dos diferentes tipos de câncer em ossos e partes moles — não ósseas — da estrutura do corpo humano, Dr. Rodrigo Salim, como de hábito, recorreu a quem entende muitíssimo sobre o tema e, no caso, pediu a seu amigo profundo conhecedor de ortopedia oncológica, Edgard E. Engel, que respondesse algumas perguntas e enriquecesse ainda mais esse espaço de conhecimento ortopédico.
Antes de mergulharmos no bate-papo, porém, é importante conhecer um pouco da história desse profissional.
Natural de São Paulo, capital, Dr. Engel escolheu a medicina e a ortopedia inspirado pelo seriado de TV da década de 1970 e 1980 chamado “Paramédicos” e também em razão de suas experiências pessoais com contusões e tratamentos que precisou fazer na infância. “Entrei na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto em 1983, pois queria fugir do trânsito de São Paulo.”
Dr. Engel conta que, ao terminar a residência de ortopedia e traumatologia em 1991, surgiu a possibilidade de fazer a especialização em ortopedia pediátrica. “Considerei esta uma oportunidade imperdível.” Em 1997, houve uma reforma estratégica do Hospital das Clínicas [HC] da FMRP-USP, quando se implantou um grupo específico de oncologia clínica. Dr. Engel conta que foi preciso que os profissionais se adaptassem e se especializassem também em ortopedia oncológica.
“Fiquei muito empolgado com este desafio, pois era uma área nova no hospital e na região. A equipe era formada por colegas competentes e por ser uma área de grandes desafios e possibilidades de inovação. Isso me levou a fazer a especialização em oncologia. Desde a implantação do Ambulatório de Oncologia Ortopédica, há 23 anos, temos aumentado progressivamente a capacidade de atendimento e superado muitos desafios. Há 10 anos trabalho em parceria com o Dr. Nelson Gava o que tem sido uma experiência gratificante e possibilitou um enorme crescimento do nosso ambulatório, além de destaque no âmbito nacional. Estamos entre os 10 maiores serviços de Oncologia Ortopédica do país e, recentemente, fui eleito para a presidência da Associação Brasileira de Oncologia Ortopédica.”
Dr. Engel também é docente da FMRP-USP desde 2008, atuando em três frentes: educação, pesquisa e assistência. “Na educação, além do ensino na graduação e residência médica, temos oferecido estágios em oncologia ortopédica para residentes de todo o Brasil e oferecido a complementação especializada na área. Na pesquisa, temos estudado os resultados funcionais de diversos tipos de reconstruções ósseas após ressecções de tumores e desenvolvido técnicas de tratamento inovadores como o cimento poroso e a placa elástica. Na assistência, ampliamos a nossa capacidade e qualidade de atendimento de tumores ósseos e de partes moles. Além disso, estamos acompanhando o desenvolvimento tecnológico mundial e trazendo estas técnicas para o HC.”
Neste bate-papo, Dr. Engel, com sua experiência de mais de duas décadas na área, fala-nos sobre vários aspectos da oncologia ortopédica: percentual de incidência desses tipos de câncer, indícios da existência de problemas, providências a tomar etc.
É comum que as pessoas com problemas ortopédicos-oncológicos não percebam que se trata de um câncer? Por quê?
Os tumores ósseos podem ser detectados de diversas formas. A mais comum é encontrar uma lesão do osso em uma radiografia feita para investigar outra coisa. Por exemplo: o paciente torce o tornozelo e na radiografia encontra uma lesão do osso que ninguém suspeitava. Neste caso, na grande maioria das vezes, se trata de um tumor benigno e que não precisa de tratamento algum. Outra forma é o aparecimento de uma massa ou tumoração. Nestes casos, geralmente há necessidade de investigação. Fraturas e alterações neurológicas também podem despertar a suspeita da presença de um tumor, mas são eventos mais raros. Uma outra característica dos tumores ósseos é a raridade. Apenas 1% dos cânceres são ósseos. É esperado que um ortopedista faça o diagnóstico de câncer apenas uma vez na vida. Por isso, é muito importante que os ortopedistas fiquem atentos e mantenham alto grau de suspeição para não deixarem de levantar esta hipótese e darem o seguimento adequado que geralmente é o encaminhamento para o centro de referência em oncologia ortopédica.
Há sinais, claros até para leigos, que permitam fazer o diagnóstico correto da lesão cancerígena com boa antecedência? Quais seriam?
Os pacientes que apresentam fraturas e alterações neurológicas geralmente procuram assistência médica precocemente e, por isso, o diagnóstico é feito precocemente. A situação que apresenta maior risco de demora no diagnóstico é a presença de uma massa ou tumoração. O crescimento é progressivo, mas lento e o paciente pode negligenciar a situação. Principalmente pelo fato de raramente estes tumores serem dolorosos. Nós recomendamos que os médicos que atendem pacientes com massas façam um exame clínico rigoroso e solicitem uma radiografia. Havendo suspeita de tumor ósseo ou nas partes moles, que encaminhem o paciente para avaliação no centro de referência ou entrem contato com a equipe, solicitando orientação de como conduzir o caso. Além do ambulatório aberto para casos do SUS e de convênios, nós estamos à disposição dos médicos que precisem de orientação por telefone, whatsapp ou e-mail. Nós temos atendido uma grande quantidade de consultas, facilitando, desta forma, o acesso aos ambulatórios, orientando a realização de exames ou tranquilizando os médicos quando se trata de lesões benignas e que não precisam de tratamento.
O que devem fazer as pessoas que apresentam esses sinais?
Os pacientes do SUS podem ser inseridos no sistema CROSS e serão atendidos na sexta-feira seguinte. Os pacientes de convênios e particulares podem nos procurar nos consultórios da Clínica Civil do HC da FMRP-USP. Estamos fazendo um trabalho intenso junto aos convênios no sentido de facilitar o acesso e diminuir a demora no encaminhamento. Hoje somos referência de uma grande região em volta de Ribeirão Preto. Como dissemos, devido à raridade da doença, existem poucos centros habilitados para este tipo de tratamento. Existem apenas 150 Oncologistas Ortopédicos habilitados no Brasil. Todos oferecem seus serviços em centros de referência e facilitam o acesso aos pacientes.
Em relação ao joelho, que peculiaridades são possíveis destacar em termos ortopédicos-oncológicos?
O joelho é a região mais frequentemente afetada por tumores ósseos. A faixa etária mais acometida é do adolescente e do adulto jovem. Por isso, a presença de massa ou dor no joelho, nesta faixa etária, deve ser examinada com atenção. Existe a suspeita que esta região seja mais suscetível ao desenvolvimento de câncer pelo grande potencial de crescimento do osso nesta região durante a adolescência. No entanto, os tumores ósseos podem aparecer em qualquer região e em qualquer idade. Outro ponto, as pessoas têm a tendência de relacionar o aparecimento de um câncer com hábitos alimentares, contato com drogas ou traumatismos. Alguns tumores têm esta relação bem estabelecida, como por exemplo, o câncer de pulmão e o hábito de fumar. Os cânceres ósseos e os de partes moles, ao contrário, não têm esta relação estabelecida. Não há nenhuma evidência científica de que um traumatismo ou traumatismos repetidos numa certa região ou ainda o consumo de qualquer tipo de alimento possam provocar o aparecimento de câncer. A única relação conhecida é que raramente pacientes submetidos à radioterapia ou portadores da doença de Paget podem desenvolver um tipo específico de câncer que é o osteossarcoma. Portanto, não há nenhuma medida que se possa tomar para evitar o aparecimento de câncer.
Depois de diagnosticado o câncer de joelho, o que deve ser feito?
Na verdade, existem diversos tipos de cânceres ósseos. O tratamento pode variar dependendo do tipo. Os cânceres mais comuns são o osteossarcoma e o Tumor de Ewing [osteossarcoma geralmente manifestado em crianças ou jovens, fruto de mutações genéticas ocorridas logo após o nascimento por razão ainda desconhecida]. Em ambos, o tratamento inicia-se com quimioterapia por alguns meses, depois, é realizada a cirurgia e, após a cirurgia, mais alguns meses de quimioterapia. Raramente pode ser utilizada radioterapia associadamente. A cirurgia consiste de ressecção do tumor seguida de reconstrução do defeito ósseo. A ressecção é feita com o que chamamos de “margem de segurança” que é uma faixa de tecido normal [músculo por exemplo] retirada junto com o tumor. Desta forma, aumentamos a segurança do procedimento e diminuímos a chance do tumor voltar no mesmo lugar. As reconstruções podem ser feitas de diversas formas, desde próteses grandes, implantes metálicos que substituem a função do segmento ressecado, até reconstruções biológicas. As reconstruções biológicas são técnicas que procuram substituir o osso ressecado com osso do próprio paciente ou de bancos de tecidos. Apesar de mais trabalhosas, essas técnicas tendem a ter maior durabilidade e, por isso, são preferidas, mas nem sempre é possível utilizá-las.
Que outros tratamentos podem ser usados em casos mais extremos?
Infelizmente, a amputação ainda é uma cirurgia realizada, embora raramente, em casos de tumores ósseos. Apesar de ser uma cirurgia muito mutilante, o uso de próteses modernas e de uma reabilitação adequada permite ao paciente voltar a trabalhar e ter uma vida social normal, sem restrições importantes. A indicação de cada tipo de cirurgia depende das características do tumor e deve ser discutida com o paciente, caso a caso, considerando as vantagens e desvantagens de cada método. Por isso, é muito importante que estes casos sejam conduzidos em centro de referência com profissionais habituados a realizar estes tipos de cirurgias.
Qual é a importância de, diante da suspeita de problemas oncológicos, o acompanhamento ser, necessariamente, conduzido num centro especializado e por profissionais igualmente especializados?
É muito importante frisar que tanto a investigação diagnóstica quanto o tratamento devem ser realizados em centros de referência. Biópsias realizadas inadequadamente podem comprometer o tratamento e a sobrevida, assim como o retardamento na realização de exames também podem comprometer. Eventualmente, os pacientes demoram meses para realizar uma ressonância magnética. Essa demora, além de provocar muita ansiedade no paciente, pode haver o comprometimento do resultado. Por esta razão, nós recomendamos, fortemente, que o médico que tem um paciente com suspeita de tumor ósseo ou de partes moles, entre em contato conosco ou o encaminhe o mais rápido possível. Nossa estrutura permite que o diagnóstico e o início do tratamento sejam feitos com a maior celeridade possível.
Qual é o percentual de cura dos casos de diagnóstico de câncer de joelho?
Apesar dos avanços da medicina nos últimos anos, o tratamento dos cânceres ósseos mais comuns não acompanhou essa evolução. Nossos resultados são semelhantes aos obtidos há 15 ou 20 anos, infelizmente. Contudo, a taxa de sobrevida é de 60 a 70%, muito melhor do que os 20% que sobreviviam ao osteossarcoma em 1970. É claro que estas taxas não se aplicam a todos os tumores. Outros tipos de câncer têm taxas de sobrevida muito maiores. A busca por novas drogas tem sido muito intensa nas últimas décadas e é muito provável que se encontrem soluções melhores no futuro próximo. Gostaria de chamar a atenção para um fato muito frequente nos tempos modernos. A propagação de tratamentos milagrosos que prometem a cura sem efeitos colaterais. A disseminação de charlatões e fake news é enorme em tempos de mídias sociais e os pacientes, pelo desespero, tendem a acreditar nessas mentiras irresponsáveis. Até o Congresso brasileiro foi envolvido numa situação absurda dessas há poucos anos. Nós recomendamos fortemente que os pacientes procurem profissionais comprovadamente competentes para conduzirem o tratamento. Não se deixem enganar com falsos terapeutas que prometem o que não podem cumprir alegando que só eles conhecem o verdadeiro motivo da doença ou tratamento infalível.
O que explica a força dessa corrente de falsas informações e soluções milagrosas para problemas tão complexos sobre os quais a ciência se debruça há anos e com êxitos apenas parciais?
Essas mentiras geralmente vêm com a justificativa de que os médicos ou a indústria farmacêutica só se preocupam com o lucro e não com a saúde dos pacientes. A ciência mundial é uma coisa muito séria e os tratamentos utilizados tem comprovação exaustiva de sua efetividade. Eventualmente, novas drogas podem ser testadas em pacientes, mas essa situação é especial. O paciente tem que concordar em se tratar com uma droga experimental e essas drogas são testadas previamente em laboratório. Esta situação é chamada de ensaio clínico ou “trial” em inglês. Infelizmente, apesar de todos esses cuidados, 80% das drogas testadas em ensaios clínicos não se mostram mais eficazes que o tratamento padrão e se forem menos eficazes o tratamento é imediatamente suspenso.
É comum haver sequelas por causa desses tipos de câncer?
Toda reconstrução do aparelho locomotor é acompanhada de alguma limitação. Na grande maioria das vezes, esta limitação é mínima e não compromete a função e a qualidade de vida do paciente. Estudos sobre qualidade de vida, inclusive um realizado por nosso grupo, mostram que passado o susto do diagnóstico e tratamento do câncer, a qualidade de vida volta ao padrão de pessoas sem câncer em 3 a 5 anos. É o tempo que o paciente demora para se adaptar ao reinício da sua vida. Muitos pacientes voltam à prática esportiva e ao trabalho sem restrições ou com restrições leves. É claro que os procedimentos realizados por mãos experientes, com reabilitação adequada e participação ativa do paciente na sua recuperação têm melhores chances de recuperação da função e da vida normal.
Em média, quanto tempo o dura o tratamento de combate ao câncer?
O tratamento do câncer ósseo, de uma forma geral, é prolongado e o do câncer de partes moles é um pouco mais curto. No caso do osteossarcoma, o tratamento demora 8 a 10 meses e o de um sarcoma de partes moles de 6 a 8 meses. O seguimento com exames regulares para avaliação do estado geral não leva menos que 5 anos. Mas a volta às atividades geralmente ocorre um ano após o diagnóstico. Nesse período é importante que o paciente se dedique exclusivamente ao tratamento. Lembrando que o tratamento não se resume à quimioterapia e à cirurgia. O paciente é assistido integralmente por uma equipe multidisciplinar e multiprofissional para atender à todas as demandas e necessidades.
Excelente artigo! Parabéns ao Dr. Edgard E. Engel pelos esclarecimentos e também ao dedicado cirurgião Dr. Rodrigo Salim pela entrevista, são profissionais extremamente competentes. Deus vos abençoe de uma forma rica e abundante.
Meu Filho está sendo tratado com Dr Nelson Gava,que faz parte da equipe do Dr Edgar,profissionais altamente qualificados.Minha eterna Gratidão