Anestesia: mitos e verdades de uma ciência segura

Dr. Luis Vicente Garcia, professor de medicina e amigo de longa data de Rodrigo Salim, concedeu-nos entrevista para falar sobre como a ciência da anestesia evoluiu ao longo das últimas três décadas, tornando-se extremamente segura. Garcia também falou sobre as diferentes estratégias de anestesia em cirurgias do joelho.

Formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) em 1985, Dr. Luis Vicente Garcia acompanhou boa parte da evolução da anestesiologia de perto. Amigo de longa data do Dr. Rodrigo Salim, que foi seu aluno na FMRP, Dr. Vicente Garcia nos concedeu entrevista para falar sobre como as técnicas de anestesia, os medicamentos e os recursos complementares evoluíram ao longo do tempo a ponto de tornar o “ato anestésico” uma prática segura, com índice de mortalidade de apenas um para cada 10 mil procedimentos.

Além de tratar do tema em termos gerais, Dr. Vicente Garcia nos mostrou a diversidade de técnicas anestésicas para diferentes tipos de cirurgias de joelho e reiterou que, sobretudo no ramo ortopédico, a anestesiologia se desenvolveu de maneira extremamente segura.

“Eu cresci numa cidade pequena chamada Cedral [SP], fiz o colégio na área técnica, em telecomunicações, e só decidi partir para a medicina no último ano do colégio, quando surgiu a oportunidade de prestar o vestibular. Durante o preparatório para o vestibular, fiquei entusiasmado com o que a Medicina prometia na época. Não se tratava de promessa financeira, não. Conheci algumas pessoas no preparatório que admirava e decidi ir pela mesma trilha que eles estavam indo. Na minha família, fui o primeiro a me formar médico.”

A escolha pela área de anestesia se deu no quinto ano, quando estudou a matéria e ficou entusiasmado com perspectiva de virar médico-anestesista. “Virou minha primeira opção de especialização. O anestesista precisa ter um conhecimento amplo, desde aspectos básicos até aspectos mais avançados da aplicação da Medicina. A anestesia, definitivamente, é uma área resolutiva, não deixamos nada para depois. Eu escolhi a anestesia e, por meio dela, considero que alcancei a realização profissional, porque acho que ela se adequa, filosoficamente, ao que eu penso da vida. É uma ciência muito interessante.”

Formado pela FMRP-USP em 1985, Dr. Luis Vicente Garcia acompanhou boa parte da evolução da anestesiologia, nas últimas décadas, de perto.
Formado pela FMRP-USP em 1985, Dr. Luis Vicente Garcia acompanhou boa parte da evolução da anestesiologia de perto nas últimas décadas.

Qual é a principal razão para as pessoas temerem tanto a anestesia?

A principal razão para as pessoas temerem tanto a anestesia é histórica, começou, possivelmente, em 1846, quando a atividade passou a ser necessária, já que os procedimentos médicos se tornavam cada vez mais complexos. Nesse primeiro momento e ainda uns bons anos depois disso, o trabalho do anestesista era realizado por pessoas sem a devida preparação. Na realidade, qualquer pessoa que estivesse livre na sala de cirurgia era selecionada para fazer esse trabalho. Ou seja, durante muito tempo, ninguém especializado conduzia essa tarefa e isso resultou em uma série de óbitos nesse período, o que tornou a anestesia, aos olhos das pessoas, uma experiência perigosíssima. Porém, havia outros fatores igualmente importantes que contribuíam para que o ato anestésico se tornasse sinônimo de perigo, sobretudo a falta de recursos de segurança apropriados para realizá-lo. Mesmo quando já havia mais profissionais experientes, eles dispunham de poucos recursos para conduzir o ato.

Quais são os tipos de anestesia mais temidos? Por quê?

Não existe um tipo de anestesia mais temida pelos pacientes. Nas pesquisas, a gente constata que cada paciente tem uma opinião: a anestesia que amedronta um, não amedronta o outro e, geralmente, as opiniões são fruto da opinião de outra pessoa com a qual se conversou e que já tinha sido anestesiada. Ou seja, não dá para dizer que a mais temida seja a anestesia geral, a raquianestesia ou a peridural. O fato é que, atualmente, não há razão para se temer nenhuma ou nem outra; todas elas são seguras nos dias atuais.

Qual é a diferença entre a raquianestesia e a anestesia geral?

A raquianestesia é uma técnica utilizada para prover anestesia exclusivamente abaixo da cicatriz umbilical, abaixo do umbigo. Ela confere analgesia e um bom relaxamento muscular para que o cirurgião possa trabalhar tranquilamente. Contudo, diferentemente da anestesia geral, em que há “hipnose” [sono], na raqui, o paciente fica consciente. No Brasil, há pacientes que gostam de acompanhar a cirurgia despertos, conversando com os médicos. Porém, mesmo em casos em que a raqui é a melhor escolha anestésica, há pacientes que preferem dormir. Neste caso, costuma-se dar a raqui e outros medicamentos que induzam o paciente ao sono. Já a anestesia geral pode ser usada para procedimentos cirúrgicos em qualquer local do corpo. É uma técnica em que utilizamos drogas que produzem sono [o paciente dorme, obrigatoriamente] e analgesia, o que significa tirar as dores, provocar relaxamento muscular e imobilidade durante o procedimento. Não há maior ou menor risco para uma ou outra técnica, o que há são contraindicações. Os pacientes que fazem uso regular de alguns medicamentos, dependendo de quais forem, não podem tomar raquianestesia, ao passo que a anestesia geral pode ser dada a qualquer tipo de paciente, independentemente dos remédios utilizados.

"Conseguimos reduzir significativamente os óbitos por anestesia com o aprimoramento das técnicas, dos medicamentos e o acréscimo de mais recursos, como monitores das atividades vitais do paciente durante o procedimento" explica Dr. Garcia.
“Conseguimos reduzir significativamente os óbitos com o aprimoramento das técnicas, dos medicamentos e o acréscimo de mais recursos, como monitores das atividades vitais do paciente durante o procedimento”, explica Dr. Garcia.

É possível dizer que, no passado, as pessoas temiam mais a anestesia do que a temem hoje?

O temor, no passado, era muito maior pelas razões que já dei. A mortalidade por aplicação de anestésico, hoje, é de um óbito para 10 mil procedimentos. Ou seja, é muito mais seguro tomar uma anestesia do que entrar num carro e sair para uma viagem. As pessoas nem pensam muito antes de entrar em um carro para viajar, fazem isso naturalmente, mas, para receber uma anestesia, pensam e têm medo. Podemos estabelecer uma relação com o avião. Voos são mais seguros do que viagens automobilísticas terrestres, mas as pessoas têm mais medo de voar. Outro ponto que contribui para que ainda haja temor em relação à anestesia é que as mortes por anestesia também costumam gerar impacto na mídia; a notícia anda, ao passo que um acidente de carro é logo esquecido. Porém, não se pode perder de vista que, hoje, temos muito mais recursos e conhecimento do que no passado. A grande virada na anestesiologia aconteceu na década de 1990, quando conseguimos reduzir significativamente os óbitos resultantes de atos anestésicos com o aprimoramento das técnicas, dos medicamentos e o acréscimo de mais recursos, como monitores que nos permitem acompanhar todas as atividades vitais do paciente durante o procedimento.

Como tem sido essa evolução na anestesiologia?

Da mesma forma que a medicina global evolui, as técnicas anestésicas também evoluem. Se formos pensar como era feita uma raquianestesia há 30 anos e como a fazemos hoje, vamos notar que existiu um avanço muito grande. As técnicas evoluíram e as anestesias, os medicamentos propriamente ditos, também se tornaram melhores e mais seguros. Hoje, temos recursos que tornam essas técnicas ainda mais eficientes. Por exemplo, o ultrassom é um recurso que ajuda o anestesista a fazer bloqueios. Podemos evitar uma raquianestesia em pacientes que preferem anestesia geral realizando o bloqueio de nervos periféricos com o objetivo de prover melhor analgesia pós-operatória. Esses bloqueios de nervos periféricos que, no passado, eram feitos quase às cegas, hoje são feitos com a ajuda de ultrassom, de forma bem mais precisa. Além disso, podemos citar, ainda, os métodos que temos para prover profilaxia [prevenção] de embolia pulmonar e de trombose venosa profunda que eram preocupações importantes nas décadas de 1980 e de 1990. Outro avanço relevante é que, por meio do uso de outros medicamentos, passamos a controlar sangramentos, sobretudo em procedimentos ortopédicos grandes, envolvendo o joelho, como artroplastias. Dessa forma, passou-se a realizar cirurgias de grande porte sem precisar de transfusão de sangue.

No caso dos pacientes que serão operados do joelho, quais são os cuidados pré-anestésicos?

Os cuidados pré-anestésicos são universais, valem para quaisquer tipos de cirurgia. Não importa se a cirurgia é do joelho ou do coração, a avaliação pré-anestésica é praticamente a mesma. O que muda, em geral, são as especificidades de cada paciente. Todo paciente que vai passar por uma anestesia, precisa, antes, submeter-se a consulta com o anestesista que vai discutir com ele os riscos e os benefícios de cada técnica, avaliar o seu quadro clínico e decidir, com o próprio paciente, qual é a melhor estratégia de anestesia a ser adotada.

Qual é o tipo de anestesia mais comum em cirurgias do joelho?

Pacientes que passam por cirurgia do joelho, em geral, dividem-se em dois tipos: pacientes jovens que se traumatizaram na prática esportiva ou pacientes idosos que tiveram desgaste na articulação do joelho. Logicamente, para esses dois públicos, os procedimentos são diferentes e os cuidados também. No caso de uma artroplastia [colocação de uma prótese de joelho], a raquianestesia leva vantagem sobre a anestesia geral em relação a profilaxia da dor pós-operatória, que será muito maior na anestesia geral. Então, para esses casos, a raquianestesia me parece mais segura, eficiente e gera menos transtornos no pós-operatório. Agora, no caso de uma artroscopia diagnóstica de joelho [reconstrução do ligamento cruzado anterior, por exemplo], eu optaria por uma anestesia geral, porque o paciente, geralmente, é jovem e vai se recuperar mais rapidamente do que uma pessoa idosa. Não é uma cirurgia tão invasiva, as dores do pós-operatórias não serão excessivas e sequer precisará ficar internado no hospital. Seja como for, qualquer tipo de anestesia serve para cirurgias de joelho. O fato é que, quando se trata de joelho, as complicações são bem raras mesmo.

Quais são os maiores riscos associados às anestesias em cirurgias do joelho?

As complicações, quando ocorrem, costumam estar associadas às comorbidades pré-existentes. São mais complicações da própria doença do que da cirurgia e da anestesia. Quanto ao procedimento, dependendo do caso, é preciso cuidado especial com os sangramentos e, no pós-operatório, pela imobilidade momentânea que é preciso experimentar para se restabelecer, pode haver, embora seja pouco comum — porque cada vez dispomos de mais recursos para impedir —, casos de embolia pulmonar e de trombose venosa profunda. Contudo, isso é difícil de acontecer, porque há inúmeras técnicas usadas para impedir esse tipo de contratempo.

Diante de um paciente extremamente temeroso em relação à anestesia, pela sua experiência, o que vale a pena fazer?

Explicar como tudo funciona. Assim, ele verá que está seguro. Além disso, temos de mostrar, se for o caso de um paciente extremamente temeroso, as vantagens que ele terá, em termos de qualidade de vida, depois de passar, por exemplo, por uma cirurgia como a artroplastia de joelho. Geralmente, esse paciente convive com dores diárias muito incômodas. Com a cirurgia, ele deixará de ter essas dores, poderá se mover sem tantas dificuldades e ainda terá uma vida bem mais próxima do normal. Para isso, apenas precisará passar por um procedimento seguro e bem menos incômodo, em termos de dor, do que ele talvez esteja imaginando. É importante mostrar esse custo-benefício. A cirurgia devolve a qualidade de vida à pessoa e, para tudo isso, há um risco baixíssimo, semelhante ao que temos de sofrer um acidente aéreo. Acho que é isso o que devemos destacar ao paciente temeroso.

Teria algum exemplo para ilustrar?

Tenho muitos exemplos de pacientes temerosos, mas me lembro de um que não temia a anestesia nem a cirurgia, mas a família, em razão da idade dele e de suas comorbidades, era contra que fizesse uma artroplastia de joelho. Porém, ele sofria com sérias dificuldades de caminhar por causa da artrose em um dos joelhos e ele adorava caminhar. Resultado ele sofreu uma queda e quebrou o fêmur e teve de passar por cirurgia que era muito mais arriscada do que a artroplastia. Talvez, se ele tivesse feito antes a artroplastia, não tivesse sofrido a queda. Ali, ficou claro, para mim, que, com a segurança médica que temos, não se deve postergar uma cirurgia que melhore a qualidade de vida do paciente, até porque ele foi submetido à cirurgia do fêmur com êxito. Acho que essa história mostra bem como a medicina, incluindo a anestesiologia, são seguras e ajudam a proporcionar mais qualidade de vida às pessoas.

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